sexta-feira, 30 de março de 2012

PARA VOCÊ VIVER MAIS - Degustação





"Nunca pensei um dia chegar
Te ouvir dizer:
Não é por mal
Mas vou te fazer chorar
Hoje vou te fazer chorar"

John Ulhoa (Pato Fu)


1 - A Convocação



“Cada uma que me arrumam!”, foi o que pensei sem nada dizer, porque quem “arrumou” foi meu superior imediato. Depois de mais de vinte anos trabalhando com um afinco inquestionável, o desaforado me disse que eu precisava ter mais envolvimento com áreas diferentes da minha. Convidou-me para participar da equipe de Cuidados Paliativos do hospital... Para quem não sabe do que se trata, são profissionais encarregados de acompanhar os enfermos considerados incuráveis, doentes de vida breve. Praguejei contra a função ao receber o convite, que só não recusei pela subordinação e longa amizade com meu chefe, o qual fez seu pedido soar como uma convocação militar, sem me dar a chance de opinar. “Agora vou ser babá de...”, não digo o resto da frase, por arrependimento e pela vergonha que hoje sinto de ter utilizado um termo pejorativo para complementar tão infeliz pensamento. Vergonha que eu senti somente quando comecei a exercer a atividade que, na época, eu repelia, chegando a brincar com amigos ao dizer que eles faziam o pré-velório.
Muito é dito sobre as pessoas que atravessam problemas de saúde e conseguem a cura, fala-se muito também sobre os que tiveram experiências pós-vida, experimentaram a morte, ou foram experimentados por ela, e voltaram do rápido aperitivo que ambos tiveram um do outro, reservando-se o banquete principal para mais tarde. Entretanto, quase nada se diz sobre aqueles que estão à deriva, ao sabor da “banguela” que, por capricho, valoriza em adiamentos sua visita definitiva. Falarei um pouco sobre como vivem, ainda que brevemente, quem na demora da morte se faz paciente.
O que poderia confortar e fazer sorrir quem aguarda o atraso da finalizadora? Muitos gostariam que ela fosse pontual para poupá-los da dor da espera, e é desta dor que eu também passei a padecer devido ao estreito contato com esses pacientes.
Eu tentava entretê-los com conversas, brincadeiras e, na medida do possível, realizar-lhes um último desejo... Um desejo de morte... Sim, de morte, pois para esse tipo de enfermo, os da vida não têm serventia, e os desejos antes aspirados, quase sempre sem variações: amor, sucesso profissional, dinheiro, saúde etc., de nada valiam. Saúde talvez, caso fosse alcançável.
De todos os pacientes que cuidei durante os dois anos nos cuidados paliativos, não soube de nenhum que tivesse alcançado a cura. Assim sendo, não é necessário dizer que entramos em ação apenas quando é caso de óbito quase certo, embora hoje exista uma discussão sobre a aplicação destes cuidados àqueles que não esperam pela morte a curto prazo (tetraplégicos, por exemplo), mas que também não podem esperar pela cura de suas doenças. Mas voltando aos desejos, uma vez refutada a retomada da saúde, reforço que quase sempre nada vale na ponte estreita e de mão única em que caminham os que estão prestes a chegar à outra margem; o que mais buscam são sensações relegadas ao desprezo, ou a pouca importância da maioria dos saudáveis, que visam a atingir alvos sem se importarem com o empunhar do arco, tampouco se os alvejam de forma correta, fazendo de tudo atos rápidos, prazeres momentâneos que não perduram mais do que seu tempo de ação, findando o prazer exatamente no final do ato: logo após um gole, um trago, um orgasmo, ou qualquer outra atividade com tempo de satisfação contado, geralmente tão curto quanto a viagem de uma flecha.
Espero que minha narrativa não deixe em quem a ler a crença na fragilidade da vida, e que possa, ao invés disso, proporcionar a mesma diferente visão que passei a ter dela. Também não me agradaria criar sentimentos depressivos ao contar casos que me proporcionaram experiências além-diploma, e que vão mais longe que a própria experiência médica.
Para alguns, o que digo poderá parecer uma realidade muito dura. Entenderei caso isso ocorra, pois eu mesmo me desliguei da equipe após sentir que, se nela eu continuasse por mais tempo, logo não conseguiria exercer minha função primária no hospital, que era a busca pela cura.
Para iniciar minha atividade complementar, assisti a uma palestra, fiz um rápido curso preparatório, e nada pareceu diferente aos meus vinte e tantos anos de medicina. Eu acreditava já ter visto e ouvido de tudo, julgando-me imune a qualquer estímulo que trouxesse piedade, medo, compaixão e outros sentimentos superados por mim quando eu ainda era um jovem médico. “São somente teorias”, pensei, ao final dos preparativos para minha iniciação. É na prática que os conhecimentos e os sentimentos complementam-se, moldando e habilitando o profissional ao exercício da atividade... Da atividade vem a experiência, os macetes e a tranquilidade do costume. Mas, mesmo com mais de dois anos na função, eu não me habilitei, tampouco me acostumei aos cuidados paliativos.
Antes de começar a falar sobre minhas experiências na busca por algo que pudesse fazer sentir vivo quem esperava pela morte, deixarei claro que quase nada direi sobre as inerências técnicas da minha profissão, que apesar de hoje em dia ser vista com um enganoso romantismo transmitido por uma infinidade de seriados e filmes, asseguro-lhes que ela está longe de ser matéria de entretenimento. A medicina da realidade é um misto de dores, odores, lágrimas, lamentações, agonias e imagens, quase sempre desagradáveis a ponto de chocar quem está acostumado a ver o cotidiano hospitalar pela tela do televisor. Poupar-lhes-ei a visão, o olfato e a audição, quanto aos outros sentidos, perdoem-me, mas se eu tentar poupar meu leitor, a continuação desta narrativa tornar-se-á impossível.


2 - Paulo



— Esqueci-me de trazer o baralho — brinquei com os colegas enquanto tomava café na lanchonete do hospital.
— Então tente conversar com eles — respondeu Lúcia, a mais caxias entre os integrantes da equipe. Era um pouco a desforra de ter na equipe coordenada por ela, quem sempre tratou o trabalho do grupo com menosprezo.
Não era má pessoa, mas de uma rigidez severa demais para meus padrões. Estendia seu comportamento rígido para além do profissional. Pessoa difícil. Logo no primeiro dia, ela me incumbiu de cuidar de um paciente que eu mesmo havia colocado em “estado de espera”. As expectativas dele se findaram em meu laudo. Era paciente de meia idade, uns quarenta anos, queixoso e irritadiço por comportamento natural e não somente pela doença. Eu não sabia ao certo por onde começar; estava acostumado a lidar com quem, de mim, esperava a cura, e nesta diferente função eles não viam em mim nenhuma perspectiva, apenas uma triste constatação: estavam morrendo.
Quando entrei no quarto, Paulo olhou-me com curiosidade, sem imaginar que eu iria substituir o segundo membro da equipe que desistira de trabalhar com o “casca grossa”. Ao perceber de que se tratava minha visita, disse que eu não fiz por ele o que poderia ter feito.
— Tudo que estava ao meu alcance foi feito, tenha certeza disso — tentei explicar de maneira simples, sabendo que seria um equívoco entrar em detalhes técnicos sobre a condição na qual tardiamente ele chegou ao hospital.
— Para mim você não fez nada, mas se quiser fazer alguma coisa, traga-me um copo de café — disse, enquanto o cheiro da bebida preparada no posto de enfermagem, que ficava no térreo, subia e invadia o quarto. Neguei-lhe o pedido, afinal ele estava com câncer no estômago.
— Vou trazer um baralho para jogarmos na próxima visita — respondi, saindo do quarto e encerrando a visita. Aquele era um dia em que, por mais que eu me esforçasse, nada poderia ser feito para alcançar o propósito de meu trabalho. Sem obter resposta, disse-lhe um “Até amanhã!”. A próxima visita seria dali a uma semana, mas ainda não descobri por quais motivos quis vê-lo antes; podem ter sido suas queixas. Acho que desejei fazer Paulo entender imediatamente que eu não pude fazer nada pela sua recuperação. Não digo que esta pressa veio por culpa, mas por uma sensação de que ele poderia morrer pensando que eu realmente não me esforcei para curá-lo, e isto feria profundamente meu lado profissional.
Na visita seguinte, procurando distraí-lo de seu amargor, jogamos baralho. Perdi uma e deixei que ganhasse outras duas partidas, achando que talvez ele pudesse sentir-se melhor, mas ao final das partidas, irritado, disse:
— Você é ruim em tudo que faz mesmo!
Não gostei de sua declaração, mas sentia que ele não estava em condições de